Decisão do STF sobre o piso permite que empresas negociem com os sindicatos pagamentos de salários menores que a resolução
Esse ano os trabalhadores enfermagem obtiveram uma conquista que passaram anos lutando para conseguir. O piso salarial passou a ser pago em agosto de 2023, conforme foram repassados os recursos federais. Desde de 2009, tramitava no Congresso Nacional um projeto de lei que visava estabelecer o piso salarial para a categoria da enfermagem, técnicos e auxiliares.
Esses profissionais só tiveram esse direito 13 anos depois, após idas e vindas envolvendo a Casa Legislativa, o STF (Supremo Tribunal Federal) e o governo federal. Apesar da conquista, ainda tramita no Congresso o projeto de lei 206/23, que trata sobre o teto da jornada de trabalho da categoria.
A Câmara dos Deputados aprovou em agosto de 2022 o PL 2564/2020, que garante o piso salarial de R$4.750 para enfermeiros, R$3.325 para técnicos de enfermagem e R$2.375 para auxiliares e parteiras. Após aprovação no legislativo, a lei foi suspensa pelo Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, atendendo a um pedido da CNSaúde (Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços).
Segundo o ministro, havia risco de demissão, redução na qualidade do serviço e impacto financeiro no setor público e privado. O pagamento só foi liberado pelo STF em junho de 2023, após a sanção do governo Lula à lei nº 14.581/2023, criando um fundo de R$7,2 bilhões de reais para custear as despesas que os hospitais públicos terão com o piso. Porém, a decisão da corte abriu brecha para que as entidades particulares possam negociar o pagamento do piso com os sindicatos.
Antes da reforma
Em 2009, foi apresentado na Câmara Federal o projeto de lei 4.924 de autoria do então deputado, Paulo Nazif. Após o arquivamento desse projeto, o também deputado, André Moura, apresentou o PL 459/2015, mais uma vez arquivado. Ambos os projetos previam o piso salarial para a enfermagem.
Em 2016, o artigo “Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais”, publicado na revista COFEN (Conselho Federal de Enfermagem, analisou o relatório final da pesquisa “Perfil da enfermagem no Brasil” (2013) coordenado pela pesquisadora Maria Helena Machado. No artigo, ficou exposto que 62,5%, (mais de 660 mil trabalhadores) tinham renda mensal de até R$ 3 mil.
Um estudo mais recente, de maio de 2023, feito pelos economistas José Roberto Afonso, Geraldo Biasoto Jr. e Arthur Well e divulgado no portal Poder 360º, aponta os estados com mais profissionais que recebem abaixo do piso: a Paraíba lidera quando se trata do setor privado, enquanto o Amapá lidera quando se refere ao setor público, com 59% e 62%, respectivamente, dos profissionais recebendo abaixo do piso. Os estados do sul figuram nas últimas posições nas duas categorias, com menor diferença entre o salário pago e o piso estipulado.
O custo total do piso da enfermagem ainda gera debates, com relatórios apontando diferentes resultados. Em janeiro, um estudo da LCA Consultores, encomendada pelo FBH (Federação Brasileira de Hospitais), apontou um gasto de até R$23 bilhões por ano com o piso. Já um Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados previu, ainda em 2022, um gasto de R$16 bilhões.
Na lei sancionada em maio, o governo Lula reservou R$7,2 bilhões do orçamento federal que já foram, pelo menos uma parte, repassadas a estados e municípios pagarem o retroativo. Já na Lei Orçamentária de 2024 enviada em agosto deste ano, ficou prevista uma reserva de quase R$11 bilhões, como um aporte de assistência financeira a estados e municípios.
A brecha
Em junho deste ano, o STF decidiu em plenário três pontos sobre a lei que regulava o salário dos trabalhadores da enfermagem. O setor público (estados e municípios) são obrigados a pagar o piso conforme o governo federal fizer os repasses necessários. Já o setor privado pagará o piso somente se não houver convenção coletiva que libere as empresas a pagar menos. O último ponto decidido pelo STF, vincula o piso à jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais, podendo haver diminuição proporcional do salário para trabalhadores que tenham carga horária menor.
O enfermeiro e membro do SindSaúde Paraná, Gilson Luiz, comenta que: “O piso da enfermagem não deveria ser negociado, deveria ser cumprido. Quando o STF, depois do esforço dos empresários em dificultar o pagamento, decidir sobre a negociação das empresas com os sindicatos, ele abre uma oportunidade das empresas não cumprirem com o piso”.
Outra questão levantada pelo profissional, é que, apesar do repasse para os servidores públicos do Paraná estarem quase liquidados, uma parte dos profissionais que atuam nos hospitais são trabalhadores públicos oriundos de empresas privadas que estão sob responsabilidade da FUNEAS (Fundação Estatal De Atenção Em Saúde Do Estado Do Paraná). Essas empresas que possuem contrato com o poder público também recebem os recursos do governo federal para auxiliar o pagamento do piso.
“Os trabalhadores públicos ainda não tiveram acesso ao piso e nem ao retroativo. A FUNEAS não faz nenhuma declaração oficial. Ela não repassou o dinheiro para essas empresas porque estavam fazendo levantamento de quantos trabalhadores públicos têm e qual a carga horária deles”, diz.
De acordo com a SESA (Secretaria Estadual de Saúde do Paraná), há cerca de 2.500 profissionais da área da enfermagem. O último concurso realizado foi em 2016.
Em relação a carga horária, Gilson aponta o risco que a decisão do STF trouxe à categoria: “Você colocar a área da saúde a 44 horas semanais, do ponto de vista da saúde do trabalhador é extremamente inadequado. A maioria dos profissionais trabalham entre 36 a 40 horas por semana, então acaba sendo uma forma de reduzir o valor final do salário”, observa.
O artigo “Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais”, apontou que, até a época da publicação do artigo, 34,7% dos trabalhadores ligados à enfermagem trabalhavam entre 31 a 40 horas semanais.
O estado do Paraná, após receber o dinheiro do fundo federal, começou a pagar o retroativo dos meses de maio, junho, julho e agosto aos trabalhadores que ainda não recebiam salário acima do piso.
O Senado apresentou recurso no início do mês passado, contrário à decisão do Supremo. Segundo o recurso, a decisão do Supremo apresenta ‘violação do princípio da separação de poderes’.
No artigo 2º, inciso 1º, o texto que estabelece o piso diz que “entrará em vigor imediatamente, assegurada a manutenção das remunerações e dos salários vigentes superiores a ele na data de entrada em vigor desta Lei, independentemente da jornada de trabalho para a qual o profissional ou trabalhador foi admitido ou contratado.”
Falta de mobilização do profissionais
O sindicalista também disse que um dos grande problemas enfrentados é a falta de mobilização entre os próprios profissionais da enfermagem: “A enfermagem possui uma força de mobilização que os próprios trabalhadores desconhecem. Nós também somos vítimas do discurso neoliberal que foi amplamente difundido pelo estado nos últimos anos. A participação em movimentos sindicais passou a ser vista como algo ruim pela categoria, como um movimento de pessoas ‘mal sucedidas’. Hoje, se fizermos uma paralisação, a gente vai para o sistema de saúde, mas convidar pessoas para isso tem se mostrado muito difícil”, ressalta.
O SindSaúde atua somente sobre os servidores públicos do estado do Paraná, porém há discussão para englobar também os trabalhadores públicos – ligados a empresas privadas contratadas por meio da FUNEAS.
*Matéria do estagiário Lucas Worobel sob supervisão.