Estou vivenciando uma fase de muita introspecção, bem adornada pela dor da morte – a quem sempre desprezei pela magia da vida. Me levou a essa estrada o adeus de minha sobrinha e os desencantos que a vida reclama de quem ama e encaminha o terço final da própria existência.
Sinto (meio que à flor da pele) um estranhamento sem igual a abraçar minhas circunstâncias, naquilo que viver já não parece bastar para muita gente, conforme observo das pautas redivivas que o fascismo esparrama no entorno de nossa completude.
Os registas já não se limitam às respectivas orquestras, naquilo que os instrumentos se comunicam, como que projetando sinfonias sobre a música da vida, em um teatro absurdo que sobreleva o ter sobre o ser.
As gentes não são o que um dia poderiam ter sido, na conta do reclamo da equação neoliberal que aprisiona e rouba do homem do século XXI o seu bem mais precioso: o tempo.
Sim, o tempo é o maior bem que a humanidade poderia ter e ele está sendo cotidianamente roubado de nós pelo incremento de mecanismos de mais valia que alimentam a fatura do final dos tempos.
Hoje as pessoas corroem a semana inglesa em suas oito horas diárias de entrega contra a paga pelo amálgama do esforço alheio, quando essa mesma conta poderia fechar em números menores e dias a menos.
Mas não: há uma linha de produção imaginária a ser tangida, ao final do dia, a reclamar a entrega do tempo em conta gotas que exaurem a vida que passa, enquanto abraçamos nossa opção cinzenta de produzir (tudo e nada) à troca de paga.
Vendemos os verdes e herdamos as lamúrias de um não viver que projeta o convívio mínimo em lugar da magia de vida plena, a negar o preto e branco da existência. Isso está a custar mais que o dinheiro pode pagar, dia após dia, hora sobre hora, minuto após minuto.
Deveras, o que ‘ontem era jovem novo e hoje é antigo’ grita a pleno pulmão que ‘precisamos todos rejuvenescer’, ainda que o novo não se perfaça em um novo ciclo, na medida em que a entrega do tempo (nosso maior bem) à custa de paga não nos redime na teia da existência.
Passa então que as necessidades humanas, reclamadas na riqueza alheia, se revelam uma ampulheta no multiverso temporal, cuja areia escorrida desenha a entrega de momentos cujas circunstâncias todas, paridas na mais valia da vida, não repõe os instantes vendidos.
Estamos um repositório de mágoa sobre o céu multicor de uma época gris, onde lembranças e caminhos solitários substituíram o homem de ontem, estatuindo o autômato de nossos dias – ávido por produzir, por significar e ganhar, ainda que seja apenas para ser a corrente de um elo qualquer na cadeia do destino.
Caímos no conto neoliberal e estamos prisioneiros de nossa incapacidade de ser. Sentir parece ser (cada vez mais) uma opção dos fracos, enquanto escolas internacionais (que cobram uma enormidade) se animam a lecionar empreendedorismo a nossos filhos, após tê-los cativados pela promessa do amanhã.
A lógica neoliberal decretou que hoje já é passado e ninguém se anima a uma última dança, naquilo que o caminho da areia escorrida reclama o tempo que se esvaiu enquanto o dia já era – passou que a promessa do amanhã vem tão forte que deixamos de acreditar no hoje.
Assim, títulos e compromissos de bem viver projetam suas circunstâncias sobre o láudano que transborda do Santo Graal de nossa Quimera derradeira, desolando o homem racional, enquanto uma jovem de olhos grandes (Agnetha) canta o dia antes de hoje.
Não. Distraídos não venceremos, Paulo, que a distração é o quinhão de descuido que se desprendeu do ocidente enquanto navios negreiros singravam os oceanos e pronunciavam o uso do outro, na desculpa da cor da pele, desvalendo as verdades da vida.
Há amor ou o assombro despertou o homem que convive com inteligência artificial pela vontade do conhecimento que não desenvolveu as relações, ainda que tenha libertado o derradeiro Titan?
Avenidas e esquinas entrecortadas pela velocidade aceleram o Porsche sobre a pouca pressa, enquanto destino reclama a seiva que essa pressa das gentes sem tempo de observar esgotou.
São os anos ou os anos são. Há uma significativa diferença na observação do tempo que passa, enquanto passamos sem observar o tempo – afinal não parecemos ter tempo de tempo ser, a destempo de não sermos senão uma fração (minúscula) do tempo que desperdiçamos.
Sei que a vida se pronuncia muito curta para o tamanho do amor que lhe tenho, ainda que a saudade seja a mais constante de minhas lembranças – afinal, hoje ainda não se foi, ainda que os tecnocratas do futuro tenham decretado o amanhã sobre a terra!
É tempo de tempo ser. E isso é tudo que podemos desejar do dia de hoje, naquilo que devemos viver como amanhã não existisse.
É tempo de viver!
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.