Discurso de ódio de bolsonaristas, somado a facilidade de obtenção de armas, pode inflamar as eleições e causar novas tragédias como a de Foz do Iguaçu
A 5ª Região Militar (RM), formada pelos estados do Paraná e Santa Catarina, foi a que mais ganhou novos clubes de tiro desportivo nos três anos anteriores. Proporcionalmente, a 5ª RM também é a que acumulou, desde 2014, o maior número de concessão de certificados de registro de armas de fogo para Caçadores, Atiradores Esportivos e Colecionadores (CACs), categoria para quem o porte de arma é liberado sob determinadas regras e condições – muitas das quais flexibilizadas no governo Bolsonaro.
Os números são do Instituto Sou da Paz, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto ao Exército brasileiro. Os dados são de novembro do ano passado, e dados mais atualizados devem ser divulgados em breve pela entidade.
Conforme o levantamento, foram registrados, entre janeiro de 2019 e novembro de 2021, 808 novos clubes de tiro – quase o dobro dos 438 licenciados em São Paulo. Já entre 2014 e novembro de 2021, o Exército concedeu 70.257 novos registros a CACs na região. Houve uma explosão de licenças a partir de 2019, quando o governo começou a assinar uma série de decretos e medidas para facilitar o acesso a armas e munições no país.
Proporcionalmente ao número de habitantes, as concessões dadas fazem Paraná e Santa Catarina o comando com a maior distribuição de registros no período, seguido do Rio Grande do Sul – colocando a região Sul, assim, à frente de todas as outras, inclusive do Sudeste, a de maior contingente populacional. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os estados paranaense e catarinense concentram hoje cerca de 18,9 milhões de habitantes e, pelos dados do Sou da Paz, receberam 201.335 registros de CAC entre 2014 e novembro de 2021.
No RS, com 11,46 milhões de habitantes, foram 119.727 de registros, e em São Paulo, onde vivem cerca de 46,6 milhões de pessoas, os novos registros chegaram a 233.582 no período.
Mais armas, mais violência
Em uma das medidas para flexibilizar a posse, Bolsonaro permitiu a atiradores a compra de 60 armas sem autorização do órgão de defesa, e a caçadores, 30. Por isso, a perspectiva é de mais atenção a este novo cenário diante da chegada das eleições e a escalada dos casos de violência política, que já soma casos trágicos.
Neste fim de semana, um tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT) foi assassinado a tiros por um agente penal federal bolsonarista em Foz do Iguaçu, no Oeste do Paraná. O sindicalista e guarda municipal Marcelo Arruda foi baleado por Jorge Guaranho, 38, em frente a familiares e amigos em seu aniversário de 50 anos, no sábado (9). A comemoração tinha festa temática do PT e do ex-presidente Lula. Pai de quatro filhos, ele não resistiu e morreu na madrugada do domingo (10).
O atirador também foi atingido por balas disparadas por Arruda – o sindicalista foi buscar a arma no carro após as primeiras provocações do agente federal, que segue internado em estado grave e já teve a prisão em flagrante ordenada pela Justiça do Paraná, a pedido do Ministério Público.
O corpo de Marcelo Arruda foi enterrado na tarde desta segunda-feira (11), em clima de comoção generalizada e gritos por fim de ódio e intolerância política. “A violência no Paraná mostra que os candidatos têm que se preocupar com as próximas eleições”, afirmou no Twitter o presidente da UGT, Ricardo Patah, depois de uma reunião com a cúpula da pré-campanha presidencial do PT nesta segunda.
Ódio Político
À Folha de São Paulo, participantes do encontro informaram que o pré-candidato Lula vê o ocorrido no estado como um termômetro do que está por vir. Ao longo do domingo, diversos outros postulantes ao Palácio do Planalto atrelaram a tragédia à tensão pré-eleitoral. “Adversário não é inimigo. Que o caso de Foz do Iguaçu faça soar o alerta definitivo. Não podemos admitir demonstrações de intolerância, ódio e violência política. Me solidarizo com as famílias de ambos. Esse tipo de conflito nos ameaça enormemente como sociedade”, escreveu a pré-candidata pelo MDB, Simone Tebet.
Bolsonaro e seus aliados, por sua vez, tentam descolar o episódio termômetro de um caso de ódio político. “O que eu tenho a ver com esse episódio de Foz Iguaçu?”, disse o presidente a seus apoiadores durante a manhã, reclamando, depois, que ninguém mais fala sobre a facada desferida contra ele na campanha às eleições de 2018.
Bolsonaristas em silêncio
Deputados bolsonaristas da Assembleia Legislativa do Paraná também tentaram abordar o caso como um “crime comum”, “como qualquer outro” durante sessão desta segunda. No legislativo paranaense, a tragédia em Foz do Iguaçu foi tema predominante no decorrer da tarde.
“Marcelo não foi morto num confronto, foi uma execução. Uma execução que, se não fosse impedida, talvez tivesse mais vítimas”, disse o deputado do PT Tadeu Veneri, em referência à declaração da delegada inicialmente responsável pelo caso. Substituída, Iane Cardoso afirmou, de começo, conduzir uma linha de investigação sobre um possível tiroteio.
“Não há como você tratar igual os desiguais. Seria dizer o mesmo se o Marcelo, por acaso, fosse numa festa, chegasse lá levantasse a bandeira do PT e gritasse ‘Aqui é Lula’? Não seria porque, provavelmente, ele seria tratado de uma forma bem mais agressiva.”
A Mesa Diretora da Assembleia anunciou uma Comissão Parlamentar para acompanhar as investigações sobre a morte de Arruda, formada por Arilson Chiorato (PT) e Delegado Jacovós (PL). Veneri, presidente da Comissão de Direitos Humanos e da Cidadania da Casa, também vai acompanhar o processo.
O líder do governo Ratinho Jr, Marcel Micheletto, do PL – mesmo partido de Bolsonaro –, usou a tribuna para pedir uma reflexão sobre a situação, mas usou o discurso para um ataque à oposição – basicamente deputados do PT.
“Em quantas manifestações a gente viu uma excrescência e que faz as pessoas de bem chegarem a um momento de intolerância, de raiva, de sair da sua casa para se defender, para defender a sua família?”, tentou justificar. Alinhado ao governo Bolsonaro, Ratinho Jr. se manteve em silêncio nas redes sociais.
Embora presente, o deputado Coronel Lee (DC), ex-policial militar e que ganhou repercussão nacional ao sugerir que mandaria “Lula e sua turma” para o inferno, não fez discurso algum. Houve também falas criticando a influência política armamentista no aumento da inquietação pré-eleitoral.
“Acho que armas só tem que utilizar quem está preparado para isso técnica, mental psicologicamente. Não acho que armar a população vai fazer com que tenhamos um estado de segurança maior”, apontou o deputado Michele Caputo (PSDB).
O tema é relevante. Para especialistas, a tensão social agravada pelos casos de violência política em ano eleitoral torna joga ainda mais preocupação em relação ao aumento de circulação de armas de fogo no país.
O policial penal que matou o sindicalista em Foz no Iguaçu se identifica nas redes sociais como um defensor do uso de armas para uso próprio como defesa. Ele também se coloca como “cristão” e “Bolsonaro”.
Bolsonaro quer mais armas
A posse e o porte de armas de fogo devem continuar sendo uma das principais bandeiras de Bolsonaro na busca por reeleição. Em live no fim de junho, ele comemorou o crescimento de lojas de armas e clubes de tiro no país. Sem citar fonte, disse que a quantidade de lojas para esse tipo de demanda passou de 1.650 estabelecimentos para 2.850. À época das apurações sobre o ataque ao presidente, a Polícia Federal chegou a informar que Adélio Bispo, o autor das facadas, cogitou abrir processo para ter uma arma de fogo, mas desistiu por causa dos entraves da legislação, então mais restrita.
No sábado passado, mesmo dia da festa em Foz do Iguaçu que acabou na morte a tiros do guarda municipal do PT, o deputado federal e filho de Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro (PL), e outros aliados do presidente acompanharam um ato pró-armas em Brasília. O encontro foi organizado para celebrar as normas de restrição armamentista flexibilizadas pelo Executivo Federal. E serviu de palco para uma pré-campanha do atual presidente.
Discurso de ódio
Natália Pollachi, uma das coordenadoras do Instituto Sou da Paz, diz haver uma preocupação crescente com discursos de ódio atrelados ao estímulo armamentista. Para ela, apesar de estudos consolidados já apontarem que mais armas numa realidade como a do Brasil, de alta desigualdade socioeconômica, tendem a elevar a taxa de crimes, a soma disso a discursos de ódio ou intolerância política pode tornar a conjuntura ainda mais perigosa.
“De fato, o que vem preocupando muito não é só a quantidade de armas, mas os discursos de intolerância política e até mesmo de hostilidade política que vêm sendo propagados por lideranças nacionais, até mesmo do próprio presidente. Isso, com certeza, não ajuda”, observa.
Pollachi acrescenta que, embora a sociedade brasileira tenha presenciado uma campanha eleitoral bastante inflada nos últimos anos, inclusive com atentados como o que vitimou Bolsonaro em 2018, não seria surpresa se a explosão na circulação de armas, agravada pela tensão política, marcasse os próximos meses com novos episódios tão violentos quanto o do último fim de semana no Paraná.
Violência
Levantamento do Observatório da Violência Política e Eleitoral (OVPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado nesta segunda, indica um aumento de 30% nos registros de violência contra lideranças políticas em 2022. O Código Penal brasileiro não prevê nem determina crime de violência política, motivo pelo qual a categorização é mais difícil e menos pormenorizada.
Mesmo assim, a mudança no entendimento sobre a posse e o porte de armas nos últimos anos pode ser um fator que jogue esses números ainda não bem definidos mais para cima. Por isso, há chances de crescer a percepção de violência no período que antecede a disputa eleitoral deste ano.
“O discurso pró-arma antigamente era muito mais vinculado a questões de segurança pública, as pessoas defendiam a arma para se defender. Isso já é questionável por uma série de motivos, mas ainda assim tem alguma fundamentação de autodefesa. Mas o que vem nos preocupando é que cada vez mais esse discurso pró-arma tem se desvinculado do discurso de autodefesa e se vinculado a questões políticas e ideológicas.
“Ah! Eu quero uma arma para me defender de um futuro governo do qual eu discorde” e assim vai, como a fala do presidente de que as pessoas precisam ter arma para se defender dos decretos na época da pandemia. Quando a presença da arma passa a estar vinculada a questões políticas e ideológicas, um estímulo tácito das armas para fins políticos, passa a ser extremamente preocupante”, afirma Pollachi.
Fonte: Jornal Plural