Veja como professores avaliam os impactos da proibição de celulares imposta pela Seed-PR nas escolas
A Secretaria de Estado da Educação do Paraná (Seed-PR) publicou, na última quinta-feira (10), instrução normativa que define novos critérios para o uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos em sala de aula nas escolas da rede estadual de ensino básico.
O documento, elaborado pela Diretoria de Planejamento e Gestão Escolar e pela Diretoria de Educação, segue diretrizes da própria Secretaria e outras legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Estadual n.º 18.118, de 2014, que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos para fins não pedagógicos em salas de aula.
“A proibição por meio da instrução normativa não é algo novo. Ela só regulamenta uma legislação que já está em vigor há dez anos”, afirma Rogério Nunes, professor de Sociologia da rede estadual do Paraná e membro da APP-Sindicato (Sindicato dos Professores e Funcionários de Escola do Paraná) – Núcleo Londrina.
A instrução normativa da Seed-PR determina que, em caso de descumprimento das regras sobre o uso de celulares, as instituições poderão adotar medidas disciplinares, como advertência verbal, registro na ficha do aluno, convocação dos pais e demais responsáveis para reunião com a equipe pedagógica, que deverão assinar um termo de ciência sobre a conduta do estudante.
Segundo Rogério, esse tema é objeto de vários estudos e de preocupação no campo da psicologia, tecnologia e das políticas educacionais, pois há uma constatação: o uso exagerado de celulares, em específico na escola, passou a ser um problema pedagógico.
A instrução normativa da Seed reconhece essa questão, o que é um aspecto positivo para Nunes. No entanto, ele aponta limitações na aplicação da nova regra. “A normativa é extremamente vaga. Ela responsabiliza, num primeiro momento, os professores por fazer a anotação no diário de classe e propõe como medida mais efetiva o diálogo e a comunicação com os responsáveis. Mas essas medidas, que já têm sido adotadas, mostram-se pouco efetivas no controle do uso exagerado de celulares em sala de aula”, critica Nunes.
Cenário nacional
A proposta de proibir o uso de celulares nas escolas públicas não é exclusiva do Paraná. Diversas regiões do Brasil já implementaram legislações semelhantes. Atualmente, 20 estados possuem legislações que regulamentam o uso de celulares em sala de aula.
Segundo a pesquisa TIC Educação 2023, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, apenas 12% das escolas nos estados que adotaram essa restrição conseguiram implementá-la de forma eficaz.
Em escolas municipais, 33% já baniram completamente o uso de eletrônicos, enquanto nas instituições privadas o índice é de 29%. No entanto, esse movimento tem maior adesão entre instituições de ensino fundamental, especialmente até o 5º ano, onde 42% já adotaram a medida, em comparação com apenas 7% das escolas de ensino médio.
Em fevereiro de 2024, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), decretou a proibição do uso de celulares nas escolas municipais da capital. Estados como Roraima, Maranhão, Distrito Federal e São Paulo também adotaram restrições ao uso de celulares nas redes públicas de ensino.
O debate sobre o uso de celulares nas escolas envolve pais, alunos e educadores. De acordo com uma pesquisa da AtlasIntel, divulgada em setembro, 58,6% dos brasileiros apoiam a restrição dos aparelhos nos ambientes escolares, enquanto 37,7% são contrários à medida e 3,7% não têm opinião formada.
Uma análise sociológica por trás da proibição
Para o professor de Sociologia do Instituto Federal Do Paraná – Campus Ivaiporã, Henrique Neto, a medida acompanha uma tendência global de mudança nas políticas educacionais. “Se a gente lembrar uns anos atrás, seguindo modelos europeus de educação, passamos a adotar a utilização desses dispositivos eletrônicos nas aulas. E agora, esses mesmos países que adotaram uns anos atrás os celulares e tablets estão tirando eles das escolas e a gente, de novo, está retirando esses celulares”, comenta Neto.
Ele acredita que essa mudança revela uma falta de direcionamento do país, fazendo com que o Brasil importe projetos educacionais de outros países, por vezes, desconsiderando as especificidades da realidade nacional. “Ou seja, a gente segue tendências internacionais sem pensar num modelo educacional próprio”, critica.
No entanto, ele enxerga a proibição como positiva, por um lado, e explica o porquê. Para o professor, há uma questão mais profunda relacionada ao impacto psicológico do uso excessivo de celulares. Neto cita o pesquisador Jonathan Haidt, autor do livro ‘A Geração Ansiosa’, que descreve um fenômeno conhecido como “A Grande Reconfiguração”, ocorrido entre 2010 e 2015.
“Essa grande reconfiguração está trazendo um conjunto de transtornos na sociabilização e sociabilidade dos adolescentes ao redor do mundo. A pesquisa dele é voltada para os Estados Unidos, mas o padrão replicado lá também acontece aqui no Brasil”, explica.
Segundo ele, para Haidt, essa grande mudança diz respeito à substituição de uma infância pautada em brincadeiras por uma infância baseada em telas. “Essas crianças não estão desenvolvendo habilidades necessárias para a vida em sociedade”, afirma o sociólogo.
E isso é o que dá origem, segundo o professor, a uma geração ansiosa, com graves problemas psíquicos, como transtornos de bipolaridade, depressão e automutilação.
Neto acrescenta que, além das consequências psicológicas, o uso excessivo de celulares durante a infância também traz impactos físicos.
“Esses adolescentes, que têm uma infância baseada no celular apresentam sinais claros, como a privação de sono, socialização limitada, com relações interpessoais restritas e demonstram uma atenção fragmentada, além de desenvolverem comportamentos viciantes”, explica o docente.
Pontos Positivos
Neto destaca que a proibição dos celulares nas escolas pode trazer benefícios significativos para a retomada de uma das funções sociais mais importantes da educação: a sociabilidade.
E lembra que, segundo o sociólogo Émile Durkheim, a escola tem o papel de preparar o indivíduo para a convivência em sociedade. “Por mais que vivamos em uma sociedade pautada pela tecnologia, nós ainda somos humanos. E a principal parte das nossas relações sociais são pessoais, cara a cara, olho no olho”, argumenta.
Para Neto, o uso excessivo de dispositivos eletrônicos tem prejudicado a capacidade dos adolescentes de desenvolver essas relações humanas essenciais. “A proibição do celular vai possibilitar a retomada dessas relações mais humanas, sem a mediação de aparelhos eletrônicos”, defende o professor.
Além disso, ele ressalta que essa medida pode reintroduzir práticas que estão se perdendo, como a pesquisa em livros e a escrita manual, incentivando um processo que exige mais reflexão dos alunos. “O professor vai ter a oportunidade de ver a escrita dos estudantes novamente e a demora em encontrar uma informação vai possibilitar o tempo de maturação de uma pesquisa”, afirma.
Ainda, o docente acredita que, além de favorecer o aprendizado, a proibição dos celulares pode restabelecer interações sociais mais profundas, onde os alunos terão que lidar com as diferenças de opinião e aprender a conviver com elas, sem a facilidade de ‘desligar’ ou evitar o confronto, como acontece nas redes sociais.
“Você não consegue simplesmente desligar o seu colega que pensa diferente de você. Você vai ter que entender, ouvi-lo, suportar a diferença, conviver com a diferença e assim por diante”, reflete.
Pontos negativos
Por outro lado, o pesquisador também aponta os desafios que a proibição dos celulares pode trazer para os professores e ao processo de ensino já que “o uso de equipamentos eletrônicos diversifica as aulas”, adverte Neto.
Além disso, a medida pode tornar as aulas mais tradicionais, exigindo materiais impressos ou pesquisas em livros, o que nem todas as escolas oferecem.
Ele destaca que, como educador, utiliza bastante os dispositivos eletrônicos em atividades pedagógicas, tanto para pesquisas quanto para dinâmicas de aula. “Muitas vezes, compartilho materiais diretamente nos grupos de WhatsApp dos alunos, já que não consigo imprimir, considerando a falta de recursos da escola”, comenta.
Mesmo assim, lembra que as aulas podem continuar interessantes sem o uso de tecnologias, como era no passado. “Eu sempre gosto de pensar que quando eu estava no processo educativo não tinha nada disso, e as minhas aulas continuavam sendo interessantes”, pontua.
Contradição da Seed?
Nos últimos anos, a Seed-PR tem imposto cada vez mais o uso de plataformas em sala de aula. Além de cercear a autonomia docente, os professores destacam a sobrecarga de trabalho decorrentes da “plataformização” do ensino (saiba mais aqui). Henrique Neto aponta que essa questão vai além da simples proibição de celulares em sala de aula e traz riscos mais profundos.
“Eu não vejo essa proibição como um problema de incoerência [por parte da Seed], mas sim como parte de um fenômeno muito mais perigoso, que é a plataformização da educação no Paraná, ligada à quantificação do ensino e ao colonialismo digital”, explica.
Segundo Neto, essa plataformização envolve o uso de sistemas, cujas bases de dados estão fora do Brasil, permitindo que informações sensíveis dos estudantes sejam usadas por empresas estrangeiras para treinar algoritmos. Ele traz a suposição de que a proibição dos celulares pode ajudar a reduzir a pressão por uma digitalização completa da educação, mas que o processo de plataformização não será interrompido e pode, inclusive, favorecer empresas privadas.
“Eu acredito que uma alternativa que pode surgir a curto prazo é a instauração de parcerias com grandes produtoras de equipamentos eletrônicos nacionais, resultando em tablets e celulares limitados, que seriam utilizados somente em sala de aula. Mais uma vez, estaríamos favorecendo empresas privadas em um processo que deveria ser público”, comenta.
Para Neto, o Paraná está servindo como “laboratório” de um modelo internacional de colonialismo digital, no qual os dados da educação pública alimentam bancos de dados estrangeiros, sem qualquer controle ou garantia de uso adequado.
Por sua vez, Rogério Nunes, acredita que essa proibição revela incoerências na política educacional adotada pela Seed. “A instrução normativa também revela uma contradição e uma própria incoerência da Seed, que nos últimos quatro ou cinco anos tem avançado na política pública de plataformização”, adverte.
Ele destaca dois aspectos dessa política: o primeiro é a privatização do currículo, por meio da contratação de plataformas como o Leia Paraná, o Inglês Paraná e o Matific. “Essas plataformas têm aumentado consideravelmente o tempo de tela dos estudantes no espaço escolar e são utilizadas de forma indiscriminada, tanto para crianças do sexto ano, de 11 a 12 anos, quanto para adolescentes”, acrescenta.
Rogério Nunes também questiona o fato de que, enquanto o uso não pedagógico do celular é tratado como um problema, a Seed intensifica atividades pedagógicas e educativas por meio dessas tecnologias.
Ele ressalta que o desafio inicial é reconhecer que estamos diante de um problema novo e pensar em estratégias que criem parâmetros para o uso de celulares na infância e adolescência.
“É indiscutível que a tecnologia pode dar suporte ao processo pedagógico. Temos aplicativos e ferramentas que podem potencializar o aprendizado. Porém, isso não significa que cada estudante precise portar um celular o tempo todo na escola. Devemos avançar na estruturação da tecnologia no espaço escolar, enquanto criamos mecanismos de diálogo para conscientizar adultos e estudantes sobre os impactos negativos do uso prolongado de telas”, argumenta Nunes.
“Criticar a plataformização não significa ser contrário ao uso da tecnologia no espaço escolar, mas da forma como essas plataformas têm sido impostas às escolas públicas paranaenses, elas servem apenas para o ganho e lucro das empresas que vendem as plataformas e reproduzem um exercício mecânico de um conjunto de atividades que não fazem o menor sentido, tanto para professores quanto para alunos”, conclui.
Henrique Neto também critica a plataformização da educação, apontando que esses processos refletem a precarização do ensino ao impor uma lógica empresarial. Ele destaca que a sociedade contemporânea, dominada pelo capitalismo financeiro, vê a financeirização avançar sobre diversas áreas. Ao digitalizar a educação, essa financeirização se infiltra no processo educacional, que deveria ser focado na emancipação e na superação das desigualdades.
Neto argumenta que a digitalização contribui também para a precarização do trabalho docente, já que muitos professores adoecem ao se verem limitados a uma lógica de reprodução de conteúdo, perdendo autonomia e a capacidade de adaptar o ensino às necessidades de cada turma. Ao mesmo tempo, os estudantes ficam presos a essa lógica produtivista, transformando o ambiente educativo em um espaço de reprodução mecânica, em vez de um local de crescimento humano e intelectual.
Entre o impresso e o digital
Neto menciona o livro “O cérebro no mundo digital” de Maryanne Wolf, que discute a diferença entre a leitura no digital e no formato impresso, destacando que o digital exige o uso de uma parte diferente do cérebro, com espacialidade e temporalidade distintas.
Segundo o professor, esse processo digital é irreversível, o que torna fundamental ensinar os alunos a “lerem no digital”, ou seja, a utilizar dispositivos eletrônicos de forma produtiva, como para ler artigos científicos e PDFs. No entanto, ele concorda com Jonathan Haidt ao enfatizar que “digital” não deve ser confundido com redes sociais.
Para o docente, é possível dissociar os aparelhos eletrônicos dessas plataformas, mostrando aos estudantes que tablets e celulares podem ser ferramentas valiosas de aprendizagem, e não apenas instrumentos de distração.
Portanto, a proibição dos celulares, para ele, pode ser uma oportunidade de reforçar essa distinção e, em um segundo momento, reintroduzir os dispositivos na sala de aula, mas sem a interferência das grandes empresas de tecnologia.
Matéria da estagiária Fernanda Soares sob supervisão.