Anúncio ocorre três dias após a cidade registar mais um caso de feminicídio. Entidades e lideranças classificam medida como “grande retrocesso” e demonstram preocupação com o aumento das violências
Uma das primeiras medidas anunciadas pelo prefeito recém-empossado, Tiago Amaral (PSD), além de aumentar o salário de seu vice e secretariado (relembre aqui), foi sinalizar o fim da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres.
O órgão é responsável por diversos serviços como o atendimento e acolhimento institucional para mulheres em situação de violência doméstica e formação para o trabalho e geração de renda.
O comunicado foi realizado nesta quinta-feira (2), logo nas primeiras horas do início do mandato. Segundo Amaral, a intenção é incorporar as Secretarias da Mulher, do Idoso e da Assistência Social em uma futura pasta nomeada Família e Desenvolvimento Social, comandada pela empresária Marisol Chiesa. Um projeto de lei para a reforma administrativa ainda será enviado para a Câmara Municipal de Londrina.
A mudança tem sido duramente criticada por diversas entidades como o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. Em entrevista ao Portal Verdade, a presidenta do coletivo, Sueli Galhardi, classifica a extinção da pasta como “um grande retrocesso” e “inaceitável”.
Ela lembra que a Secretaria da Mulher existe na cidade há mais de três décadas, e desde então, tem desempenhado papel fundamental para que Londrina desponte, em todo cenário nacional, como um município referência no combate à violência contra as mulheres.
“É inaceitável que qualquer gestão faça uma junção de secretarias que se complementam como todas as demais políticas, mas que jamais devem ser somadas”, diz.
Sueli salienta que as políticas de enfrentamento às desigualdades de gênero devem ser pensadas de maneira interseccional, ou seja, de modo integrado, articulando os diferentes setores.
Por exemplo, no setor de Educação (ainda sem liderança definida) é necessário propor ações de conscientização contra o machismo, sexismo a fim de quebrar ciclos de violências que, por vezes, resultam em casos de feminicídio.
Já no campo das políticas habitacionais é fundamental discutir a concessão de moradias, de maneira prioritária, para mães solo, mulheres em situação de violência, já que a disponibilidade de um espaço seguro é uma das primeiras medidas para que elas tenham possibilidade de sair dos lugares onde correm risco de vida.
“O plano de política para as mulheres traz eixos e quais seriam as principais propostas que devem ser contempladas dentro do município na política para as mulheres. Quando você traz isso para uma política e mistura tudo, com certeza impacta e afeta diretamente a população que será atendida. Então, por isso, somos totalmente contra a união dessas secretarias”, assinala.
Prometeu, mas não cumpriu
Questionada pela reportagem se o Conselho Municipal de Direitos da Mulher foi consultado pelo atual governo, Sueli ressalta que não houve nenhuma tratativa, o que ela entende como um desrespeito.
“Nós entendemos que política pública se faz no diálogo, na construção coletiva. Quando existe um processo de transição de governo, é onde se conhece as políticas, se ouve as demandas, se conhece as pessoas que já estão há bastante tempo trabalhando com essas políticas e se respeita esse movimento”, adverte.
Ainda, ela reforça o caráter antidemocrático da decisão. “Nós temos um plano de política para as mulheres, foram referendadas e discutidas em conferência. O controle social e a participação social são inerentes à construção das políticas públicas, então, nós não podemos aceitar que um gestor, ao assumir esse lugar, possa vir de forma autoritária desfazer toda esta caminhada que o município construiu, temos que ouvir as pessoas envolvidas”, acrescenta.
Sueli também pontua que, durante a corrida para a Prefeitura de Londrina, os sete candidatos incluindo Tiago Amaral, assinaram uma carta compromisso, sendo um dos itens o fortalecimento da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres.
“O prefeito [Tiago Amaral] tem conhecimento desse documento, assinou esse documento no sentido de ouvir as demandas que nós trazemos. O Conselho tem esse papel de fiscalizar, monitorar, avaliar, propor e garantir os direitos das mulheres. Isso é uma subtração dos direitos das mulheres”, observa.
Aumento das violências
Entre os serviços especializados no combate à violência, a Secretaria Municipal da Mulher oferece o Centro de Referência em Atendimento à Mulher (CAM); a Casa Abrigo Canto de Dália (CADC) e o Plantão 24 horas.
O CAM foi criado em 1993 e oferece atendimento, nas áreas de Psicologia, Serviço Social bem com assistência jurídica para mulheres acima de 18 anos, que estejam em situação de violência doméstica e familiar, conforme previsto na Lei Maria da Penha.
Pautado no trabalho em rede, o CAM mantém uma série de parcerias, possibilitando a integração com diferentes órgãos e serviços como Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, Delegacia da Mulher, Secretaria Municipal de Defesa Social, Unidades de Saúde, Unidades Escolares, Conselho Tutelar, entre outros.
Além do atendimento direto à mulher em situação de violência, o CAM coordena e executa capacitações, oficinas, palestras focadas na prevenção à comunidade em geral.
Segundo dados da Secretaria, em 2023, o CAM atendeu 692 mulheres, sendo 473 novos casos registrados apenas naquele ano. A principal queixa foi relacionada à violência psicológica (49,8%) seguida de violência física (44,6%).
No que se refere à idade das mulheres atendidas, a maioria possuía entre 26 e 35 anos (32,1%). A região da cidade com maior incidência de casos atendidos foi a Norte (30,2%), seguida pelas regiões Oeste (16,4%) e Sul (16%).
Implantada no ano de 2004, a Casa Abrigo destina-se a acolher temporariamente, em local adequado e sigiloso, mulheres acima de 18 anos, residentes em Londrina, que estejam em situação de violência doméstica e familiar, sob risco de morte ou grave ameaça, acompanhadas ou não de seus filhos menores de 18 anos ou dependentes, com o objetivo de garantir a integridade física e psicológica.
Em 2023, a Casa Abrigo Canto de Dália acolheu 194 vítimas, sendo 98 mulheres e 96 crianças e adolescentes (dependentes).
Já o Plantão 24 horas destina-se a atender, nos períodos noturnos, finais de semana e feriados, após o fechamento do horário de trabalho do CAM, mulheres que se encontram em situação de violência doméstica e familiar em Londrina e necessitam garantir sua integridade física e psicológica por estarem sob risco de morte ou grave ameaça. Esse serviço é realizado em parceria com a Central de Flagrantes da Polícia Civil.
Sueli compartilha que uma das principais preocupações é que estes serviços sejam descontinuados, aumentando a vulnerabilidade das vítimas. “Claro que nós precisamos pensar ainda mais, criar uma força-tarefa voltada para o combate às violências, isso tem que ser aumentado e não diminuído. Certamente vai impactar diretamente nas políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres”, aponta.
Tentativa de diálogo
A presidenta afirma que, desde o recebimento do notícia, o Conselho está buscando o apoio de outras organizações, em âmbito estadual e nacional bem como da imprensa, para denunciar o desmonte e tentar estabelecer um diálogo com o poder Executivo local.
“O primeiro encaminhamento é abrir o diálogo para que isso não ocorra no município de Londrina, não podemos aceitar esse retrocesso, isso para nós é muito certo. Porque essa política foi construída ao longo da história com muito sacrifício, com muita luta e nós não podemos retroceder. No mínimo 30 anos nós estaríamos retrocedendo, caso essa proposta atual do prefeito se concretize”, alerta.
Sueli também rebate o argumento de redução de despesas emitido pelo prefeito. “Quanto ao enxugamento da máquina e dos recursos públicos, nós entendemos que não se economiza em política pública, ao contrário, se investe em política pública para garantia dos direitos da população em todas as áreas. A economicidade deve ser feita sim, em outros espaços como cargos e comissionados, o aumento de salário do secretariado, tudo isso onera ainda mais o município, mas retirar políticas públicas e espaços já conquistados, isso realmente é inaceitável dentro do município de Londrina”, finaliza.
Outras lideranças e entidades também se posicionam
Em vídeo nas redes sociais, Elza Correia, ex-deputada e primeira a comandar a pasta ainda durante a gestão Luiz Eduardo Cheida, em 1993, também rechaçou a medida. Para ela “a questão da violência contra a mulher vai muito além da Assistência Social. Nossa luta mundial já provou isso. Sem uma estrutura específica para essa pauta, perderemos inúmeros avanços e conquistas no combate à violência contra a mulher, cujos números são altíssimos” (confira vídeo na íntegra aqui).
Ela lembra que o anúncio ocorre poucos dias após Londrina registrar mais um caso de feminicídio. No último dia 30 de dezembro, uma jovem de 25 anos foi assassinada pelo então companheiro dentro da casa, na Vila Brasil, região central de Londrina.
Dados do Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem), da Universidade Estadual de Londrina, apontam que o Paraná registrou 69 feminicídios no primeiro semestre de 2024.
Em nota, o Néias – Observatório de Feminicídios Londrina também criticou a possibilidade de extinção da Secretaria. Confira abaixo:
Néias – Observatório de Feminicídios de Londrina recebe com preocupação a decisão anunciada pelo prefeito Tiago Amaral de unificar as secretarias municipais da Mulher, do Idoso e de Assistência Social em uma única pasta. Essa proposta, embora apresentada como uma medida de eficiência administrativa, representa um retrocesso na efetivação de políticas públicas específicas e autônomas para as mulheres.
Londrina tem sido historicamente um município pioneiro na construção de políticas em defesa dos direitos das mulheres. Desde a criação da Coordenadoria Especial da Mulher em 1993, a cidade estabeleceu um marco na administração pública local, reconhecendo a importância de uma estrutura independente para tratar das questões de gênero. Essa trajetória, alinhada às melhores práticas nacionais e internacionais, consolidou Londrina como referência no enfrentamento à violência contra mulheres e na promoção da igualdade de gênero.
A fusão das secretarias, como proposta pela nova gestão, não só compromete os avanços locais conquistados ao longo de décadas, mas também constitui um retrocesso no contexto mais amplo das políticas públicas brasileiras e globais. É importante destacar que a política para as mulheres têm princípios, diretrizes e objetivos próprios, distintos daqueles que orientam as políticas de assistência social, de infância e adolescência, ou de promoção da igualdade racial.
Enquanto a assistência social é uma política-fim, voltada prioritariamente à proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica, a política para as mulheres é transversal e articuladora, funcionando como um eixo capaz de integrar ações em diferentes áreas da administração pública.
Quando essas políticas são agrupadas em uma mesma secretaria, a experiência histórica em diversos municípios brasileiros tem mostrado o enfraquecimento das ações direcionadas às mulheres. Nesses contextos, as iniciativas de promoção da igualdade de gênero e de enfrentamento à violência contra meninas e mulheres passam a ser tratadas de forma secundária ou subordinada às prioridades da assistência social.
Essa fusão também desconsidera o caráter universal da política para as mulheres, que não deve estar limitada à condição de pobreza ou vulnerabilidade. Seu objetivo é alcançar todas as mulheres, promovendo o empoderamento, a autonomia e o enfrentamento de todas as formas de violência. Tal abordagem está alinhada às diretrizes nacionais e internacionais, como o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que reforça a necessidade de órgãos específicos e autônomos para a gestão dessa política.
Além disso, é preocupante a ideia de reunir, sob um mesmo guarda-chuva administrativo, direitos tão diversos como os das mulheres, das crianças e adolescentes e das pessoas idosas. Essa visão reflete um entendimento ultrapassado e conservador, que desconsidera o avanço conceitual e prático das políticas públicas setoriais no Brasil e no mundo. Historicamente, em Londrina, o Movimento Social de Mulheres tem sido exitoso em demonstrar a inadequação de propostas semelhantes.
Desde a criação da Coordenadoria Especial da Mulher em 1993, todas as tentativas de fusão das políticas para mulheres com outras pastas foram revertidas por meio de diálogo e articulação com prefeitos, vereadores e vereadoras.
Néias reforça que a junção proposta não se configura apenas como um equívoco administrativo, mas também como um retrocesso significativo na história da administração pública de Londrina. A cidade deve continuar sendo exemplo de inovação e compromisso com os direitos das mulheres, avançando no fortalecimento de políticas de políticas públicas específicas e autônomas.
Seguiremos atentas e mobilizadas, comprometidas em contribuir para que Londrina permaneça avançando no fortalecimento das políticas públicas voltadas às mulheres, garantindo sua autonomia e efetividade.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.