“O único motivo por que ainda estou viva é porque fugi, conheço outras pacientes que não conseguiram e morreram”, diz
“Como paciente eu não tinha nenhum direito, quem decidia se eu iria comer, tomar banho, ficar com as outras pacientes ou isolada, era a terapêuta, ela tinha poder total”, conta Alice*, jovem que foi internada contra sua vontade, aos 24 anos, em uma instituição que se definia como comunidade terapêutica.
As comunidades terapêuticas (CTs) são formadas por grupos privados que recebem dinheiro público para realizar o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas. As instituições atuam sob uma lógica de abstinência e de isolamento social e familiar.
Embora a entrevistada tenha sido informada de que estava em uma comunidade terapêutica e a própria instituição se considerava uma, é importante ressaltar que, de acordo com a Lei 13.840/2019, as CTs não realizam “internação” de caráter involuntário e são organizações sem fins lucrativos. Elas possuem contrato com o governo federal e recebem em torno de R$ 1.200,00 por vaga, ou seja, não é necessário pagar pelo acolhimento na CT.
Alice e seus familiares foram enganados, a jovem permaneceu durante um ano e meio em uma instituição ilegal onde sofreu e presenciou inúmeras situações de maus-tratos, abusos, torturas e o falecimento de uma de suas amigas.
“Quando eu percebi que se tratava de uma clínica ilegal eu fugi. O único motivo pelo qual ainda estou viva é porque fugi, conheço outras pacientes que não conseguiram e morreram”, diz ela.
Involuntária
A jovem foi vítima de uma internação involuntária, foi dopada e levada por uma equipe até a instituição, localizada em Ibiúna, no interior de São Paulo. Ela conta que o local tinha capacidade para receber até 20 pessoas, mas na época da sua fuga já atendia cerca de 75 mulheres.
Em uma lógica semelhante a de hospitais psiquiátricos, as comunidades terapêuticas costumam estar localizadas em cidades do interior e se preocupam em tirar as pessoas “indesejadas” dos olhos da sociedade.
“É um depósito de pessoas totalmente voltado para o lucro, porque quando a família não tem dinheiro para pagar, quem paga é a comunidade religiosa. É muito fácil enganar as pessoas dizendo que quer ajudar”, conta Alice.
Os dois primeiros meses foram os piores para Alice, ela lembra que, no início, o isolamento, os maus-tratos e as humilhações eram constantes.
“A primeira coisa que dizem quando você chega é que a sua família não te quer, porque você é um problema. Não existe tratamento, é tudo na base do pânico. Fiquei os primeiros dois meses sem contato nenhum com a minha família, sem saber onde estava e sem medicação”, conta ela. “Na primeira semana fiquei trancada no quarto, ficava definhando o dia todo. Eles me davam um mata leão, medicação e me amarravam na cama”, lembra.
Quando contactou a instituição, a mãe de Alice foi enganada pela propaganda de que o local contava com médicos, enfermeiros e terapeutas. Porém, a jovem relata que nada disso era posto em prática.
“Não existia nenhum tipo de tratamento. Eles trabalhavam com apenas três medicações básicas, então se você está agressivo ou triste eles te dopam, se está ‘funcionando’ trabalha, é basicamente isso o tratamento deles”, conta Alice.
“Depois que você aceita permanecer na comunidade, eles te colocam para limpar a casa, cortar a grama, limpar a piscina. Esses trabalhos eram a única coisa que fazíamos. Depois a gente ficava cinco horas ociosas e trancadas nos quartos, era igual uma prisão”, conta. Alice lembra que dormia em um quarto com outras 12 mulheres, mas o local era adequado para receber apenas quatro.
A administração das comunidades terapêuticas no Brasil, na maioria das vezes, está ligada a movimentos religiosos, com destaque para iniciativas privadas vinculadas à fé católica ou evangélica. Nestes espaços, a espiritualidade e o rigor nas normas se sobressai ao tratamento científico.
“A única coisa que fazíamos além do trabalho era a leitura da bíblia e dos narcóticos anônimos, de vez em quando havia um filme do evangelho ou religioso”, diz Alice. “O tratamento era muito pautado na religião, na vergonha e na dor”.
Também é comum que as comunidades sejam controladas por ex-policiais, pastores ou pessoas ligadas à igrejas. Esses locais têm como regra pregar a abstinência e defendem que a religiosidade é capaz de afastar o indivíduo das drogas.
“Ao propor uma solução simplista e religiosa para o problema das drogas, essas instituições ignoram as questões estruturais e perpetuam uma perspectiva punitiva e moralizante, que vai contra as abordagens cientificamente embasadas e prejudica o verdadeira cuidado e tratamento dos pacientes”, afirma Mariane Panek, psicóloga social e comunitária.
A dor da perda
Durante seus trabalhos na comunidade, Alice foi monitora de uma das pacientes chamada Cecília, de 54 anos. Cecília foi internada pela família quando tinha apenas 19 anos e, desde então, morou em inúmeras instituições pelo país.
“Um dia ela acordou vomitando, ninguém quis prestar socorro ou levar ao hospital. Então, eu coloquei-a no carro e obriguei que me levassem. Nos deixaram na emergência do hospital sozinhas”, lembra Alice.
Segundo ela, Cecília era uma mulher muito inteligente e sensível. “Provavelmente ela era esquizofrênica, por alguns comportamentos, mas como a gente não tinha médico na comunidade não dava para saber qual era a condição do outro”, conta.
Naquela noite, Alice presenciou a morte de Cecília em seus braços e a única atitude que a instituição teve foi de informar a família, que por sua vez não teve interesse em fazer a autópsia para determinar a causa da morte.
“O que eu pude fazer para deixar a vida dela mais feliz eu fiz, desde gestos simples como fazer a sobrancelha, passar um batom e arrumar para as visitas, mesmo sabendo que não vinha ninguém”, conta.
De acordo com as diretrizes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as comunidades terapêuticas não devem aceitar ou manter pessoas com problemas de saúde graves em suas instituições, a menos que tenham uma equipe médica adequada e infraestrutura completa para atendê-las em tempo integral.
Contudo, a instituição que Alice frequentava era uma exceção à regra e, segundo ela, recebia dezenas de mulheres que supostamente teriam algum comprometimento psíquico.
Torturas eram comuns
Alice conta que presenciou casos de tortura na instituição. “Chegavam pacientes sem braço porque foram contidos do jeito errado e, por isso, perderam seus membros. Histórias assim eram comuns”, diz ela.
“Também tinham pacientes que eram amarradas em árvores e eles cutucavam formigueiros para as formigas subirem no corpo, eram situações de tortura mesmo”, conta. “Pessoas chegavam de madrugada e ficavam três horas apanhando e reagindo, se elas não se acalmassem chamavam outra equipe para levar para outra instituição”.
A psicóloga comunitária e social, Mariane Panek, afirma que os métodos desempenhados nas comunidades terapêuticas ressoam com os métodos manicomiais de abordar os sofrimentos psíquicos a partir de uma perspectiva que já foi rejeitada anteriormente por meio da luta antimanicomial no país.
“O paralelo com os horrores dos manicômios de Barbacena, conhecidos como o “Holocausto Brasileiro”, é inevitável, onde milhares de indivíduos foram submetidos a condições desumanas e tratados como mercadorias”, diz a psicóloga. “Essa repetição é alarmante e demanda uma reflexão crítica sobre o modelo de tratamento adotado nessas instituições”.
Fuga da comunidade
As pacientes que se comportavam bem eram colocadas nas atividades administrativas da clínica, foi assim que Alice conseguiu ter acesso às informações financeiras da comunidade.
“Quando eu comecei a trabalhar na parte financeira, percebi que todas as doações que busquei, as vezes que tive que vasculhar resto de comida, a falta de médico e medicamento, tudo era para eles economizarem e ganharem mais dinheiro”, diz ela.
“Quando eu vi que a Cecília tinha morrido por nada, não consegui continuar naquele lugar, decidi fugir”, conta emocionada.
Alice fugiu de carro enquanto a instituição realizava uma mudança de endereço. “Vendi meu violão em um posto de gasolina e consegui chegar em Curitiba viva”, diz ela. “Quando cheguei em casa, descobri que estava há mais de sete meses doente, eles nunca me levaram ao médico”.
Já fazem seis anos desde que Alice foi internada nesta comunidade ilegal. Ela diz que, mesmo relatando todas as situações pela qual passou, a família continua grata pelo “tratamento” dado pela instituição.
“Não acho que seja maldade da família, é justamente o amor que eles sentem que faz eles chegarem ao extremo de desconsiderar toda essa dor, que eles mesmo não conseguiriam lidar, só pelo fato de você estar sóbria. A família está desesperada, não importa o custo, ela só quer que você pare de usar droga”, afirma ela.
Mas foi apenas no ano passado que Alice conseguiu iniciar o tratamento adequado. Ela tentou uma vaga através do Sistema Único de Saúde (SUS) durante três anos, mas nunca conseguiu, então precisou optar pelo tratamento particular.
“Há um ano e meio tenho medicação e tratamento. E desde então voltei a ser uma pessoa saudável. Agora me sinto viva e consigo ficar em silêncio comigo mesma sem ter vontade de tacar um baque na veia”, relata.
“A precarização que enfrentamos atualmente é uma consequência dessa visão que encara a saúde e a doença como oportunidade de lucro, em detrimento do bem-estar da população. Até o momento não foi apresentada uma solução eficaz para lidar com essas complexidades sociais, enquanto o estado continua a negar sua responsabilidade nessa questão”, afirma a psicóloga, Mariane Panek.
“Todo ser humano merece ser amado e quando você vê o nível de desumanidade que eu vi, você não pode ficar quieto”, afirma Alice.
A redação do Brasil de Fato – Paraná entrou em contato com a Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas (Febract) sobre os relatos de maus tratos, torturas e humilhações relatados por Alice. Lucas Roncati, psicólogo e diretor executivo da federação, reforçou que as CTs devem ser legalmente constituídas de alvará e licenças sanitárias, atuarem com equipe e abordagem multidisciplinar e proporcionar um ambiente saudável, eticamente protegido e que tenha como objetivo a reinserção social dos usuários.
“É lamentável que existam tantos desserviços nas mais diferentes áreas de cuidado em nosso país. As más práticas precisam ser combatidas e os maus serviços impedidos de funcionar, em quaisquer áreas que estejam atuando”, diz ele.
Comunidades Terapêuticas
O crescimento da atuação de comunidades terapêuticas (CTs) e medidas de financiamento governamental das mesmas tem sido alvo de preocupações entre especialistas em saúde mental. Alguns acreditam que esteja ocorrendo um retorno ao antigo modelo dos manicômios, proibidos pela Lei de Saúde Mental (nº 10.216), sancionada em 2001.
As CTs, que defendem a abstinência, recebem amplo apoio de bancadas religiosas e forças políticas conservadores. Em contrapartida, profissionais da saúde e psicologia, que lideram a luta antimanicomial, defendem a redução de danos e serviços substitutivos de saúde mental.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), existem cerca de 2 mil comunidades terapêuticas no Brasil, com mais de 10 mil vagas subsidiadas, considerando 485 comunidades cadastradas e financiadas pelo governo federal.
Em janeiro, o governo Lula autorizou 587 dessas instituições a receberem fundos públicos. Em 2023, o orçamento de 237 milhões de reais para essas comunidades superou o destinado à rede psicossocial do SUS, desde 2020 o financiamento das CTs cresceu 90%.
A criação do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas pelo governo Lula, em substituição à secretaria que existia no governo Bolsonaro, reflete um rebaixamento da pauta. Durante a gestão Bolsonaro, essas comunidades receberam mais recursos, apesar de denúncias de violações de direitos feitas por inspeções do Conselho Federal de Psicologia e do Ministério Público.
Para aqueles que esperavam uma mudança na relação do governo federal com as CTs com a chegada de Lula, a criação do novo departamento foi decepcionante. No entanto, isso reflete a força política dos setores interessados nas CTs no Congresso Nacional.
Hoje, segundo informações do Núcleo Estadual de Políticas sobre Drogas, o Paraná conta com 53 contratos celebrados, totalizando 1.152 vagas sociais distribuídas entre adultos, adolescentes e mães que ainda estão amamentando.
Alice é um nome fictício para a entrevistada que não quis se identificar.
Fonte: Brasil de Fato