Mais de dois anos depois de as mudanças nas regras que regem os cartões de vale-refeição (VR) e vale-alimentação (VA) terem sido aprovadas no Congresso, os trabalhadores ainda não têm acesso à parte dos benefícios prometidos. As discussões sobre a regulamentação de mecanismos criados para aumentar a competição em um mercado de R$150 bilhões estão travadas em meio a divergências entre as empresas do setor e a uma queda de braço entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central.
Números do Ministério do Trabalho mostram que 312 mil empresas concedem hoje VA e VR para mais de 22 milhões de trabalhadores em todo o Brasil. Os vales são oferecidos por 475 “tiqueteiras”, mas há concentração nas maiores.
Alelo, Ticket, Pluxee e VR detinham 80% do mercado em números de beneficiários em julho de 2023, segundo um estudo da LCA Consultores encomendado pelo iFood, uma das novatas no setor. A rede conveniada é de mais de 800 mil estabelecimentos, conforme a Associação Brasileira das Empresas de Benefício ao Trabalhador (ABBT), que representa as empresas tradicionais.
As mudanças realizadas em 2021 e 2022 mexeram nas regras do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), que concede incentivos fiscais a companhias que oferecem VA e VR para os funcionários. O objetivo é aumentar a rede conveniada para os trabalhadores e diminuir os custos para o comércio. Entre as alterações está a previsão de interoperabilidade e de portabilidade.
O primeiro permite que todas as bandeiras de vale sejam aceitas em estabelecimentos que já trabalham com pelo menos um dos cartões. Hoje, os lojistas só aceitam os tíquetes das empresas de voucher com quem têm contrato. Já a portabilidade possibilita que os trabalhadores possam trocar o vale concedido pela empresa.
Xerife do mercado
Originalmente, o governo deveria regulamentar a interoperabilidade e a portabilidade até maio de 2023. O Ministério do Trabalho é responsável pelo programa, mas avalia que as duas novas funções devem seguir regras definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
Nos bastidores, o Ministério da Fazenda e o Banco Central estão em uma queda de braço para definir quem será o xerife do mercado. Há uma avaliação de que o BC seria o órgão com maior proximidade com o assunto, uma vez que já tratou da interoperabilidade de cartões de crédito e débito, e da portabilidade de salários.
O regulador do sistema financeiro, porém, avalia que os tíquetes diferem dos meios de pagamento normais, porque são usados para um fim específico, não podem ser negociados nem sacados, além de não oferecerem risco sistêmico. O BC se resguarda em uma resolução que estabelece que a autarquia não tem competência para tratar de benefícios.
Mas, segundo integrantes da Fazenda, a área técnica da pasta chegou a formular uma proposta para tirar esse entendimento da norma, mas não conseguiu levá-la à instância decisória do CMN.
Emmanuel Sousa de Abreu, que cuida do tema na Fazenda, reconheceu que há dificuldade de encontrar um regulador para os arranjos de pagamento do PAT que faça valer as novas regras. Ele defende aumentar a competição para impedir taxas consideradas abusivas que as empresas “tiqueteiras” cobram dos estabelecimentos comerciais, maiores do que a média do crédito (2,3%) e do débito (1,1%).
— Já temos definido que o que não pode continuar é a taxa de 6%. A gente espera que a interoperabilidade dê essa concorrência para baixar os custos dos fornecedores de alimentação e para aumentar a rede conveniada para os empregados usarem o cartão — afirmou Abreu em evento recente da Associação Brasileira de Instituições de Pagamento (Abipag).
Ele disse ainda que o governo quer tirar do papel a regulamentação da interoperabilidade ainda neste ano, mas a portabilidade deve ficar para um segundo momento.
Para o diretor executivo da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), Henrique Lian, os órgãos envolvidos, como a Fazenda e o BC, correm um risco de judicialização com a demora em regulamentar.
— Pode ficar pior do que hoje. São dois direitos: o do cidadão de escolher sua empresa de benefícios e o das empresas de concorrerem sem discriminação.
Fazenda e BC concordam que o ideal é que o setor chegue a uma solução consensual, mas há diferentes entendimentos entre as empresas tradicionais no mercado de voucher, as novatas e aquelas que desejam entrar no PAT, especialmente sobre a necessidade da portabilidade.
As empresas consolidadas entendem que a interoperabilidade seria suficiente para ampliar a rede para os trabalhadores e temem uma concorrência desleal com a portabilidade. Já parte das novatas acredita que a abertura do mercado só acontecerá de fato se o trabalhador puder escolher sua bandeira de preferência.
A ABBT propôs que a interoperabilidade ocorra por meio de uma infraestrutura de mercado financeiro, já regulada pelo BC, que faria a gestão do fluxo financeiro entre as empresas de voucher. No curto prazo, a sugestão seria criar um portal para que os lojistas se conectem com todas as bandeiras de voucher.
O presidente da associação, Lúcio Capelletto, afirma que a portabilidade para VA e VR difere do mecanismo criado para a conta-salário, por exemplo, em que a vantagem estaria em melhores condições de taxas ou produtos em um relacionamento com outro banco.
— No vale-refeição, qual seria vantagem? Não pode vender o ativo, nem pode ser usado para outra finalidade, nem por outra pessoa. E a empresa que concede recebe benefício fiscal. É preocupante — disse Capelletto.
Sem almoço grátis
O presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, Paulo Solmucci, teme que as empresas novatas concedam benefícios para os trabalhadores para convencê-los a trocar de voucher, e que o custo fique com os restaurantes.
— Não acreditamos que o consumidor vai migrar para outra bandeira sem um benefício. E não há benefício sem custo — afirmou ele.
Já a associação Zetta, que representa as empresas novatas no segmento, como o iFood, defende que a portabilidade é necessária. “A Zetta entende que os instrumentos de portabilidade e interoperabilidade dos benefícios do PAT são essenciais para oferecer ao trabalhador liberdade de escolha e ampla oferta de utilização dos benefícios trabalhistas, além de estimular a competição neste mercado”, disse, em nota.
Há ainda uma terceira via de empresas de tíquetes, como a Caju, uma plataforma que já usa a “trilha” financeira das bandeiras Visa, Master ou Elo, possibilitando que o trabalhador utilize o benefício em praticamente todos os comércios alimentícios sem necessidade de interoperabilidade ou portabilidade.
Procurados, os ministérios da Fazenda e do Trabalho e o Banco Central não comentaram o tema.
Como funcionam os benefícios?
- O que é o PAT? O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) foi criado em 1976 com incentivos fiscais para o empregador melhorar a nutrição de funcionários. O valor do benefício é isento de encargos sociais, e a empresa com tributação com base no lucro real pode deduzir parte das despesas com o PAT do IR.
- Como funciona? O empregador pode oferecer ao trabalhador refeição pronta, cesta de alimentos ou cartões com créditos para aquisição de refeição (VR) ou itens de alimentação (VA) em uma rede conveniada pelas emissoras composta de 800 mil bares, restaurantes, supermercados e estabelecimentos afins.
- O que pode mudar? Hoje, cada empresa “tiqueteira” tem sua máquina no estabelecimento credenciado. Se for regulamentada uma lei de 2022 com mudanças no setor, esse mercado terá interoperabilidade, mecanismo que permite que todos os cartões passem na mesma maquininha. Também está prevista a portabilidade, que permite ao trabalhador trocar de “bandeira” de vale.
Fonte: O Globo