Antropólogo da UFPR que estuda a cultura Avá Guarani, Victor Hugo Oliveira Silva diz que conflitos só terão fim com demarcaçao da terra ancestral dos indígenas no Oeste do Estado
Desde a década de 1980 os povos Avá Guarani mantém um processo de retomada das suas terras na região Oeste do Paraná. Em 2013, em meio a esse processo, um cacique localizou uma ponta de canoa em um barranco próximo ao Rio Piquiri, na região do sítio arqueológico da Cidade Real do Guairá. Ele, então, informou o achado à Comissão de Patrimônio e Cultura do Paraná. A descoberta uniu o antropólogo Victor Hugo Oliveira Silva aos povos Avá Guarani.
Mestre em Antropologia e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) na época, Victor foi convidado para fazer uma assessoria antropológica durante a gravação do documentário Ygá Mirî – Resgate emergencial de canoa localizada no sítio arqueológico Ciudad Real del Guayrá”. O documentário registrou a retirada – que aconteceria em 2018 – da canoa descoberta em 2013.
“O cacique teve um sonho que dizia que ele devia ir pescar nessa proximidade e que lá ele encontraria um objeto dos antigos. Quando ele encontrou, entrou em contato com a Comissão de Patrimônio e Cultura do Estado do Paraná. Então desde 2013 a Comissão, juntamente com o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), vieram monitorando esse achado, através do esforço de grandes funcionários públicos, para que ele fosse cuidado e resgatado da maneira adequada”, conta Victor Hugo, atualmente pós-doutorando em Antropologia.
A canoa foi encontrada no sítio arqueológico reconhecido como a primeira vila espanhola no estado do Paraná. “Metade do estado do Paraná foi espanhol durante muito tempo, justamente na região em que os Avá Guarani vem realizando, desde anos 1980, um processo de retomada”, destaca Victor Hugo. “Eles habitam essa região há mais de 2 mil anos”.
A convicção, arqueológica e histórica, da presença ancestral dos Guarani no Oeste paranaense levou o Departamento de Antropologia e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná, ao qual Victor Hugo está ligado, a se manifestar por meio de nota de repúdio contra a fala do governador do Paraná, Ratinho Jr., que chamou os indígenas nas retomadas de “índios paraguaios”.
“Há 2 mil anos os povos Tupi-Guarani vêm ocupando essa região do Sul do Brasil. Fomos nós que inventamos as fronteiras. É uma invenção colonial e eles estavam aqui desde muito antes. Então o fato de eles estarem voltando, desde 1980, para a região de Guaíra e Terra Roxa, buscando a demarcação da Terra Indígena Guasu Guavirá, não é à toa. É porque ali eles já estiveram”
Honra aos ancestrais
A atuação de Victor Hugo na produção do documentário deu-se no sentido de buscar compreender o significado daquele achado – a canoa dos ancestrais – para os Avá Guarani. E ele precisou transcender a compreensão ocidental de arqueologia.
“Existe um jeito ocidental de entender um resgate arqueológico. Para as lideranças e os rezadores Ava Guarani é totalmente diferente. Minha função era entender qual era o ponto de vista deles e tentar transmitir no filme. Claro que tem limitações, mas a gente entendeu que para eles existia uma outra dimensão envolvida: os donos antigos das canoas. Os donos realizaram o processo para que aquelas canoas se tornassem um documento pela legitimidade da luta por aquela terra”, explica o antropólogo.
A canoa foi datada de cerca de 500 anos atrás. Naquela época, segundo Victor Hugo, os espanhóis não dominavam a técnica para fazer canoas, mas sim os Guarani, que já vinham descendo da Amazônia há muito tempo.
“Eu aprendi tudo isso com as lideranças Avá Guarani”, conta. “Para eles esse processo (de retirada do achado) era algo muito profundo, porque eles vieram a reocupar essa região, onde lutam de forma brava, digna, porque seus ancestrais estiveram lá”.
Atualmente, no pós-doutorado, o antropólogo vem estudando a perspectiva Avá Guarani sobre esse achado arqueológico. Ele relembra um momento inspirador que pode presenciar durante a retirada da canoa.
“Quando foi escavado eles fizeram um ritual e chamaram os rezadores mais antigos da região para que eles conversassem com os donos das canoas e para que eles entendessem como proceder, como lidar. Teve toda uma reflexão sobre o conceito de dono, que é uma coisa muto específica, porque o mundo ameríndio é muito diferente do ocidental. Para os Avá Guarani, escavar algo dos antigos não é algo leviano, é algo complexo. Se você não respeita os donos isso pode envolver, inclusive, revés para os envolvidos”, detalha.
“Eu me senti muito honrado de poder aprender com eles e tentar transmitir um pouco no documentário. O estado do Paraná deveria ter orgulho da existência do povo Guarani no Estado, do entendimento que eles têm do que é território.”
Após um período no Museu Paranaense, os objetos escavados encontram-se atualmente no Museu de Arqueologia da UFPR (MAE), unidade Juvevê.
Canoas corriam risco
O processo de retomada das terras pelos Avá Guarani vem desencadeando violência contra os povos indígenas há décadas, como relatou Ana Lucia Yvoty-Guarani em textos publicados na Rede Lume em 2022. Durante a escavação das canoas, houve cerco de ruralistas, afirma o antropólogo Victor Hugo.
“Existe um processo de preconceito, de luta muito forte pela terra, e muita fake news sobre os Avá Guarani, que fizeram com que esse achado arqueológico corresse certo perigo na região. Havia o risco de que essas canoas que atestam a ancestralidade fossem destruídas”, revela.
Desde julho de 2024, a violência tem se intensificado nas retomadas, após aprovação da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023). Além do Paraná, povos do Mato Grosso do Sul e da Bahia têm sido alvos de ruralistas.
Fonte: Rede Lume de Jornalistas