Ativistas argumentam que a decisão do prefeito dificulta o acesso da população de menor renda ao tratamento
Anunciada na última segunda-feira (6), a decisão do prefeito de Londrina, Tiago Amaral (PSD), de vetar a distribuição de medicamentos à base de substâncias derivadas da cannabis sativa: o canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) nas unidades de saúde pública da cidade tem sido criticada por diversas associações e ativistas que defendem o uso terapêutico da planta, a exemplo da Cura em Flor.
A Associação Cura em Flor do Norte do Paraná surgiu em 2020, com a intenção de desconstruir o estigma que permeia o tratamento com a cannabis medicinal bem como promover o acolhimento e o encaminhamento médico e jurídico para pacientes e familiares.
Em entrevista ao Portal Verdade, a farmacêutica e uma das fundadoras da organização, Gabriela Benjoino avalia que a proibição foi “inesperada” e de “prejuízo incalculável” para a população.
Ela lembra que a possibilidade de oferta da cannabis medicinal na rede municipal vem sendo discutida há cerca de um ano tempo, foi tema de audiência pública na Câmara Municipal de Londrina em junho do ano passado, contando com a Casa lotada e amplo apoio dos vereadores, que aprovaram a medida em novembro último.
“O tratamento com a cannabis já existe no Brasil e no mundo há bastante tempo. Basta uma pesquisa em artigos científicos para se convencer que os resultados demonstram inúmeros benefícios e que este remédio faz a vida do paciente, e de todos ao seu redor, melhorar”, destaca.
Luiz Gustavo Navas Grabski, técnico em química e membro do conselho da Associação Cura em Flor classifica o posicionamento como “precipitado”. Para ele, o chefe do poder Executivo local negligenciou a saúde de milhares de londrinenses que fazem o uso da medicação.
“Um grande retrocesso, indo na contramão do mundo todo, onde já se tem milhares de comprovações científicas da eficiência do tratamento com a cannabis para vários tipos de comorbidades, expõe a população a continuar os tratamentos convencionais ou continuando a comprar seu remédio com base de cannabis via importação e ou por vias ilegais. Cortou um passo dado pelo poder Legislativo, onde se tinha a intenção de fornecer o remédio para melhor qualidade de vida dos londrinenses”, analisa.
A proposta, de autoria do vereador Mestre Madureira (PP) recebeu 18 votos favoráveis, apenas a vereadora Jessicão (PP) se posicionou contra a matéria.
O projeto visa garantir o acesso a medicamentos nacionais e importados contendo substâncias derivadas da planta cannabis sativa, desde que autorizados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e prescritos por médicos. Desde 2015, a pasta permite o uso medicinal da planta em todo o país.
De acordo com a medida, para obter os medicamentos, o paciente deverá apresentar laudo médico com a indicação do CID (Código Internacional de Doenças), justificativa sobre a utilização da substância, comprovação científica de sua eficácia para o tratamento e a prescrição detalhada do tratamento.
“A nossa luta não busca comprovar a eficácia para isto já existe inúmeros estudos e relatos de pacientes e familiares. Lutamos para que o acesso ao medicamento seja possível da forma menos burocrática, segura e economicamente possível”, complementa Gabriela.
Os medicamentos à base de cannabis têm demonstrado eficácia no tratamento de condições como dor crônica, epilepsia, doenças reumatológicas e até esquizofrenia.
Política proibicionista dificulta acesso
Para Gabriela, a política proibicionista faz com que o medicamento à base de cannabis chegue ao paciente com um valor alto, tornando o acesso ao remédio restrito a parcelas da população que possuem maior renda e, portanto, afastando segmentos economicamente mais vulneráveis, que também necessitam do tratamento. O preço de cada frasco pode variar de R$ 350 a R$ 2.700.
“Muitos não conseguem acesso ao medicamento, sendo de suma importância o envolvimento do município, estado e união no custeio do tratamento para a população carente, afinal a saúde é direito de todos e dever do estado”, ressalta.
“A decisão se mostra inesperada, pois esta postura demonstra exatamente o oposto do que deveria ser e do que a própria Constituição Federal determina, podendo ser entendido como uma omissão do poder Executivo do município de Londrina, ausentando sua responsabilidade sobre o tema, deixando de prover saúde gratuita e universal à população”, adverte.
Ela ressalta que, diferentemente de outras plantas medicinais como boldo, hortelã, carqueja, a cannabis não pode ser cultivada em casa, o que acaba levando o paciente a necessidade de adquirir o produto por meio de exportação e revendedores autorizados.
“Com a aprovação deste projeto de lei, a população londrinense passaria a ter acesso gratuito e universal ao tratamento de diversas doenças, permitindo a redução ou substituição de medicamento atualmente utilizados. Como consequência, haveria uma diminuição nos efeitos colaterais associados a esses medicamentos, resultando em uma melhora significativa na qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares”, pontua.
Não basta apontar falta de recurso
Nas redes sociais, o prefeito londrinense afirmou que o veto foi orientado pela PGM (Procuradoria-Geral do Município), alertando vício de iniciativa, ou seja, segundo o órgão, o projeto cria despesas à Prefeitura, sendo inconstitucional.
Gabriela rebate o argumento, destacando que não basta sinalizar falta de recurso, mas construir caminhos que possam garantir o acesso ao tratamento.
“Os argumentos apresentados pela Prefeitura, embora recorrentes em situações de desinteresse por parte do Poder Executivo em propostas oriundas do Legislativo, merecem uma análise mais aprofundada. É inegável que a alocação de recursos é um ponto crucial para garantir uma implementação justa e eficaz da distribuição de medicamentos. No entanto, a proposta em questão não deve ser descartada sem a devida consideração de alternativas viáveis”, assinala.
Ainda, a especialista aponta que o tratamento com cannabis pode ser conduzido com baixo custo, por meio do cultivo regulamentado pelas associações locais. Isso permitiria o fornecimento de medicamentos à Prefeitura a preços acessíveis via SUS (Sistema Único de Saúde).
Conforme informado pelo Portal Verdade, em 2024, o Paraná regulamentou a Lei Pétala, de autoria do deputado estadual Goura (PDT), que garante o acesso a produtos à base de cannabis medicinal sem custos, através da Farmácia Paraná (saiba mais aqui).
“É fundamental que Londrina reconheça a relevância deste tratamento, que pode revolucionar a qualidade de vida dos munícipes, enquanto respeita os princípios de economicidade e eficiência na gestão pública”, complementa Gabriela.
Conservadorismo
Contando com o apoio de Jair Bolsonaro (PL) e aliado do governador Ratinho Júnior (PSD), que se silenciou sobre a promulgação da Lei Pétala no Paraná, durante sua atuação como deputado estadual por uma década bem como no transcorrer da campanha para a Prefeitura de Londrina, Tiago Amaral propôs ou apoiou medidas que, sobretudo, acenam para o eleitorado de perfil conservador.
Questionados pela reportagem se a posição ideológica do prefeito pode ter influenciado a decisão de vetar o projeto, as lideranças defendem que o acesso terapêutico à cannabis é uma questão de saúde pública e deve ser debatido pelo viés científico.
“Quando se ocupa um cargo de gestão, espera-se que ideologias e crenças pessoais sejam colocadas em segundo plano, permitindo que a ciência e os princípios democráticos orientem as decisões, especialmente em temas relacionados à saúde pública. A cannabis medicinal, embora ainda carregue um estigma social, é respaldada por amplas evidências científicas tanto no Brasil quanto no exterior, e deve ser discutida de forma transparente e acessível para que toda a sociedade compreenda seus benefícios”, sinaliza Gabriela.
“Minha atuação como membro da Associação Cura em Flor, há mais de quatro anos, me permite testemunhar a necessidade urgente desse tratamento, especialmente, para famílias carentes que frequentemente recorrem a nós em desespero. A cannabis medicinal tem o poder de transformar vidas, e quem vivencia de perto o impacto desse tratamento entende sua real importância. Infelizmente, a maior barreira não é a falta de esforços de profissionais e associações, mas sim a ausência de empatia e interesse de muitos políticos, que colocam interesses ideológicos e políticos acima da saúde pública. A Lei Pétala representa um avanço significativo, mas é preciso vontade política para que sua implementação seja uma prioridade e o acesso aos medicamentos se torne uma realidade para todos”, ela acrescenta.
“Acho que hoje quem não conseguiu ainda enxergar o potencial da cannabis para melhora da qualidade de vida da população tem a obrigação de jogar a ideologia fora e olhar para a realidade de possibilidade de tratamentos, inclusive, no desmame de medicamentos convencionais. Infelizmente, vejo que sempre o ideal político vem na frente do interesse da melhoria da qualidade de vida para a população”, finaliza Luiz Gustavo.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.