Especialistas consideram que a medida é desconectada da realidade e reivindicam que pessoas em situação de rua devem ser ouvidas na proposição das políticas públicas
Na última semana, o vereador Deivid Wisley (Republicanos) protocolou na Câmara Municipal de Londrina, projeto de lei que visa proibir a doação de dinheiro “em espécie ou através de qualquer tipo de transação bancária” para moradores em situação de rua.
Em entrevista à Tarobá, o parlamentar mais votado no último pleito, disse que o principal objetivo é reduzir a mendicância na cidade. Ainda, segundo ele, o valor recebido através das doações é usado para o “tráfico de drogas”. O vereador acredita que o não recebimento do dinheiro, fará com que as pessoas em situação de vulnerabilidade “procurem emprego e ajuda para sair das ruas”.
Contudo, especialistas ouvidos pelo Portal Verdade avaliam que a proposição além de insuficiente, contribui para a violação de direitos daqueles que já encontram imensas dificuldades para acessar as políticas e serviços públicos.
Para Olegna de Souza Guedes, professora do Programa de Pós-Graduação de Serviço Social e Política Social da UEL (Universidade Estadual de Londrina), presidenta do Conselho Regional de Serviço Social do Estado do Paraná, a proposta representa total desconhecimento da realidade da população em situação de rua e colabora para perpetuar preconceitos em relação a esta camada da sociedade.
“Querer vetar, por exemplo, o repasse da bolsa morador de rua é desconhecer o quanto ela é necessária para garantir estratégias de sobrevivência daqueles que, diante de tanta ausência de direitos têm a rua como seu local de moradia”, pontua.
Em janeiro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a lei que cria a política nacional para a população em situação de rua. O texto havia sido aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023.
Entre as novidades, está a criação de uma bolsa de qualificação profissional para custear despesas com alimentação e transporte às pessoas em situação de rua que participarem de cursos técnicos, entre outras modalidades de formação.
“Vi em uma brilhante dissertação de mestrado, por exemplo, uma entrevista com um morador de rua que explicava que, com o dinheiro da bolsa morador de rua podia comprar produtos de higiene básica para sua companheira, também moradora de rua; haja vista que a pouca renda que tinha com vendas de papelão e latinhas era insuficiente para isso. Não se trata de alguém que faz da vadiagem o seu dia a dia, como comumente se pensa”, adverte a professora.
Para a docente, além de uma medida desconectada da realidade, uma vez que responsabiliza os sujeitos pela condição em que vivem, desconsiderando as múltiplas desigualdades que estruturam a sociedade e levam a falta de oportunidades e direitos, incluindo, o acesso à moradia, a proposição também tem um caráter higienista.
“Cabe lembrar que a capacidade de escolhas se dá em condições materiais de sobrevivência. Seres humanos e suas estratégias de sobrevivência e seus possíveis projetos de vida não podem ser confundidos como pragas a serem combatidas com venenos. Aliás, sequer as pragas merecem venenos que as matam, mas matam também a natureza”, observa.
“A medida, se aprovada, só revela a criminalização dos pobres, das trabalhadoras e trabalhadores que vivem com parcos salários. É um projeto de lei que só reforça estigmas em relação às pessoas em situação de rua porque é, em si, o espelho uma sociedade que vira às costas para a própria humanidade”, acrescenta.
Alisson Fernando Moreira Poças, assistente social, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Londrina e membro do Conselho Permanente de Direitos Humanos do Estado do Paraná, também classifica o projeto de lei como “anacrônico e equivocado”.
Alisson, que também é comunicador popular, ressalta que, atualmente, Londrina não oferta nem a metade de vagas em acolhimento institucional, considerando o contingente de pessoas em situação de rua.
Em 2019, uma pesquisa conduzida pelo projeto Práxis Itinerante vinculado à UEL, em parceria a Unopar, Ministério Público de Londrina, Defensoria Pública e Secretaria Municipal de Assistência, identificou 930 pessoas em situação de rua na cidade (acompanhe relatório na íntegra aqui).
Porém, com a pandemia de Covid-19 e o aumento das desigualdades sociais, a probabilidade é que esse número tenha aumentado. A estimativa é que, hoje, aproximadamente 1.500 pessoas estejam vivendo pelas ruas de Londrina.
Além disso, a liderança lembra que a cidade enfrenta um grande déficit habitacional. Londrina possui cerca de 10 mil famílias vivendo em ocupações e uma lista de espera de quase 60 mil pessoas na Cohab (Companhia de Habitação de Londrina).
“O último empreendimento entregue foi o Residencial Vista Bela, lá em 2012. São 13 anos de inércia do município e da Câmara de Vereadores e o déficit habitacional só aumenta. O contrário de casa é rua”, assinala.
Alisson também pontua que as políticas voltadas à assistência de dependentes químicos ainda são frágeis no município. “Porque não lutarmos pelo HumanizaSUS que garante dignidade em todas as esferas da saúde pública e para todos os cidadãos? Porque não observarmos a Lei, conhecida como Reforma Psiquiátrica, que assegura tratamento humanizado, nas comunidades e territórios, ao invés de grandes depósitos de seres humanos? Criam narrativas que colocam seres humanos em risco, o que não deixa de ser uma grande contradição”, adverte.
A Política Nacional de Humanização, citada por ele, existe desde 2003, visando efetivar os princípios do SUS (Sistema Único de Saúde) no cotidiano das práticas de atenção e gestão, qualificando a saúde pública no Brasil e incentivando trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários.
Quem for flagrado oferecendo qualquer quantia, estará sujeito a multa no valor de um salário mínimo.
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“Não existe solução mágica”
Olegna também questiona as potencialidades do projeto de lei para promover a efetiva inclusão no mercado de trabalho formal. Setor este, que como argumenta a professora, é marcado por uma série de contradições.
“A qual mercado de trabalho o vereador se refere? Será que ele desconhece a precarização do trabalho e a dinâmica do modo de produção que expulsa de seu mecanismo grande volume de trabalhadoras e trabalhadores para aumentar lucros? Como se constitui o mercado de trabalho em Londrina? Quantos direitos o Estado deve proporcionar para assegurar condições materiais adequadas para que trabalhadoras e trabalhadores possam garantir sua existência?”, interroga.
Alisson também analisa que “mais uma vez o vereador erra na avaliação”. Ele compartilha, que com base no último Censo da População em Situação de Rua em Londrina, embora a maioria possua baixa escolaridade, existem pessoas de diferentes níveis de escolarização e de todas as classes sociais em situação de rua na cidade.
O assistente social também chama a atenção para a necessidade das pessoas em situação de rua serem ouvidas a fim do planejamento das políticas públicas.
“O desgoverno Bolsonaro jogou milhões de pessoas na miséria. São inúmeros os fatores que levam a permanecer em situação de rua. Como vamos oferecer emprego, se existem pessoas em busca do mínimo de dignidade? Não existe solução mágica. Com trabalho e empenho das políticas públicas garantidoras de direitos, trabalho articulado entre assistência social, saúde, habitação, cultura, educação, podemos encontrar um caminho que seja produtivo, ouvindo instituições e coletivos, mas, sobretudo, a própria população em situação de rua que é protagonista da própria história”, diz.
“Me parece uma ação orquestrada de um determinado grupo no Estado. Temos observado no Conselho Permanente de Direitos Humanos do Estado do Paraná, o agravamento da criminalização da pobreza, da aparorobia [sentimento de aversão à pobreza] e da intolerância. Já cobramos e encaminhamos algumas denúncias para os órgãos competentes. Creio que esse tipo de medida do vereador só aumenta a fragilidade de quem já está fragilizado, com vínculos familiares rompidos, sem renda, em situação de rua”, ele complementa.
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Foto: Agência Brasil
Ainda, Alisson indica que os argumentos do vereador reforçam o estigma de que toda pessoa em situação de rua utiliza o dinheiro para a drogadição. Para ele, enquanto o foco está em debates inócuos, problemas complexos deixam de ser atendidos. “Uma cidade de mais de 600 mil habitantes e temos apenas um Restaurante Popular, isso não te incomoda vereador? Perdemos tempo, energia e dinheiro público, com muitos projetos sem pé nem cabeça na Câmara de Vereadores de Londrina, que são inconstitucionais”, evidencia.
O vereador admite que o projeto pode ser inconstitucional, mas garante: “Na minha concepção, vários projetos na legislatura passada passaram pela Comissão Justiça mesmo sendo inconstitucionais. Por que? Porque na minha visão o interesse local supera essa questão de ser constitucional ou não”.
Alisson também critica a operação “Choque de Ordem”, implementada pelo prefeito Tiago Amaral (PSD). Integrando efetivos da GM (Guarda Municipal) e PM (Polícia Militar), a atividade prevê o patrulhamento intensivo na região central da cidade. Além da presença de viaturas no Calçadão, os agentes têm percorrido imóveis demolidos, vazios, muitos deles ocupados por pessoas em situação de rua e dependentes químicos (saiba mais aqui).
“Gostaria muito de ver o tal ‘Choque de ordem’ da administração, agindo contra os grandes devedores e sonegadores de impostos do município. Os vereadores deveriam se debruçar em cima de projetos que beneficiam a população como um todo e não aos que agradam aos poderosos do centro da cidade”, reforça.
Devido o recesso do Legislativo, a Mesa Executiva deve receber o projeto a partir desta terça-feira (4). Na sequência, será encaminhado para a Comissão de Justiça.
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Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.